Sinopse:
No Romance de Cordélia Rosa Lobato de Faria compraz-se em caminhar no fio da navalha, inventando um género que deliberadamente invoca, pelo avesso, o romance de cordel, forçado a figurar na primeira pessoa em algumas das passagens mais tortuosamente divertidas do livro. Livro que se constrói, em ficção, sobre uma série de histórias de vida reais, cuidadosamente recolhidas pela autora e por ela sabiamente recontadas, sem que se perca o drama, a violência, a ternura, a linguagem de um submundo forçado a ocultar-se sob a abas da nossa vergonha colectiva.(...) Mas, mais vale experimentá-lo que julgá-lo: quem, tendo-o começado, for capaz de o abandonar merece um doce. O cianeto é por minha conta.
João Bettencourt da Câmara
Doutor em Ciências Sociais.
Professor do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
A minha opinião:
Este é um daqueles livros que comprei numa feira de velharias aqui na zona e há mais de 10 anos tem estado parado, sem ser lido.
Às vezes preciso de pequenos empurrões destes para pegar em livros há muito esquecidos que habitam os cantos e recantos aqui da casa.
Quis logo escolher uma autora portuguesa. Quis ler no feminino.
Fui visitar a mini-estante mais empoeirada e fui direta a Rosa Lobato Faria. Porquê? Porque foi dela que li o meu primeiro livro de poesia. Eu que me considero uma amadora nesse campo, de imediato fui conquistada sem um pingo de resistência.
E este título "Romance de Cordélia"? Curioso, não?
Antes mesmo de iniciar a leitura sou confrontada com a dedicatória da autora:
"Às reclusas do Estabelecimento Prisional de Tires, cuja verdade tornou possível esta ficção."
Escusado será dizer que fiquei curiosa.
Esta minha edição é da Círculo de Leitores e na sua contracapa não tem qualquer informação. Nem sinopse, nem uma única frase de valor. Nada.
Mas vamos lá falar do seu tutano. Da sua substância formativa.
A história começa com um monólogo de uma mulher não identificada que já se encontra na prisão e que confessa estar inocente. Confessa para si e para os seus botões, uma vez que admite não valer de nada anunciar tal facto a outros.
Está na cadeia. Foi condenada e esta é a sua vida.
E vamos desenrolando este cordel de vida. Primeiro o passado de Cordélia (é este o nome da nossa heroína), salpicado com momentos presentes, e depois o seu futuro/ final.
Toda a vida de Cordélia foi repleta de escolhas infelizes, de confiança dada a pessoas sem um pingo de valor, de tristeza e lágrimas. Mas Cordélia não se abate. Cordélia é uma mulher de força e resiliência e avança pelas tragédias como um marinheiro em alto-mar em dia de tempestade.
Se alguém espera um livro feliz este não é o livro ideal. Tudo começa de forma triste e tudo acaba de forma trágica. Cordélia é a única luz neste livro.
Mas não se enganem. Este é um livro que DEVE ser lido. Para nunca nos esquecermos do destino que ainda aguarda os que habitam as nossas cadeias. Da sua luta pela sobrevivência numa sociedade que (vamos falar com sinceridade) não vê com bons olhos alguém que tem uma passagem pela cadeia no seu currículo.
É bem mais fácil virar a cara e fazer de conta que não vemos.
Mas falamos de seres Humanos. Pessoas. Alguns, pessoas como nós, e que tal como Cordélia não tiveram alguém de bom carácter que os ajudasse a seguir um bom caminho.
Cordélia não teve uma vida digna de romance de cordel, foi mais uma tragédia.
E apesar de todo o livro ser algo triste, a autora não deixou de o enfeitar com as suas habituais delícias. Passagens tão belas que me vi a lê-las mais do que uma vez. Passagens como estas:
"Noite. Lugar de mágoas e remorsos, saudades e rancores, pedras na consciência e penas no coração. A noite traz os demónios da memória, deixa-me à sua mercê, num combate desigual com o acontecido de que só o sono me pode salvar.
O dia é diferente. Hoje, no tear, correu-me bem. Terminei os seis metros da encomenda, amanhã é dia de montar a teia para um novo trabalho. Há uma alegria atávica no labor manual das mulheres que nasce, como a obra, dos dedos nus, da alma vaga, de um sonho por achar." (página 60)
"Mas agora estou aqui a fazer passar a lançadeira na cala e a pensar que sou, que somos, o fio que não conhece o desenho em que está inserido e a que vai dando forma, inexoravelmente, até cumprir o seu destino de fio, de teia, de tecido.
São coisas que eu penso nas minhas horas leves, em que as mãos sorriem e o coração divaga." (página 130)
Rosa Lobato Faria.
Mulher portuguesa. Poeta. Encantadora não de serpentes mas de serpentinas de palavras. Uma excelente autora portuguesa a incluir nas nossas bibliotecas, nas nossas vidas e (na minha opinião) uma excelente opção para prendinhas de Natal.
Falo por mim, adorava receber um livro desta autora (que ainda não tivesse) no meu sapatinho.